A educação para o futuro já existe, e foi criada no sertão em 1960

A educação para o futuro já existe, e foi criada no sertão em 1960

É impossível pensar em futuro sem pensar em educação – e não é preciso ser um educador formado para ter noção disso. No episódio 6 do Innovation Hub Show essa foi uma das questões trazidas pelo Igor Lopes, nosso host: será que a educação do futuro terá mais a ver com experimentar, observar e questionar do que simplesmente decorar?

Essa questão da educação se mostra cada vez mais urgente com o surgimento das IA generativas. Para Déborah Oliveira, diretora de conteúdo do IT Fórum, os formatos de educação mais tradicionais não estão em sintonia com as necessidades de um mundo pós-IA. Ela aponta que a escola hoje nos ensina a não questionar, e em um mundo pós-IA é justamente a capacidade de questionar, de enxergar as coisas de forma diferente, que irá nos ajudar a continuar progredindo como profissionais e como pessoas.

Talvez até mesmo a própria forma de definirmos o que é alfabetização precise ser modificada – algo que está acontecendo recentemente no Brasil. Até não muito tempo atrás, o critério para considerar uma pessoa alfabetizada era se ela simplesmente conseguia reconhecer as letras e escrever o próprio nome para assinar um documento. Com o passar dos anos esse critério foi evoluindo, e em 2023 o MEC estabeleceu novos parâmetros de exigência, e para ser considerado plenamente alfabetizado é preciso, no mínimo, que o aluno reconheça todo o alfabeto e quais são as estruturas básicas da mecânica e da escrita, além de saber codificar de forma sonora (basicamente ler em voz alta) os símbolos escritos.

Essa constante evolução dos parâmetros de alfabetização fez com que, em apenas 2 anos, o número de alunos considerados como alfabetizados no segundo ano fundamental caísse de 56,4% em 2021 para 39,7% em 2023. Claro, tivemos uma pandemia que obrigou o fechamento de escolas e toda uma mudança na forma de ensinar no meio desse caminho, mas essa queda não necessariamente quer dizer que a educação básica piorou, apenas que os critérios para considerar um aluno com alfabetizado foram aumentados.

E é possível que as coisas mudem ainda mais nos próximos anos, principalmente porque um dos componentes mais necessários para o mundo pós-IA ainda não é considerado como chave na nossa avaliação de alfabetização: o pensamento crítico.

A educação do futuro

Para Luiz Candreva – futurista, head de inovação da Ayoo, professor na HSM e na Fundação Dom Cabral, Colunista da CNN Brasil e board member na Boali – o futuro é de quem sabe fazer perguntas. Em sua participação no episódio 6 do Innovation Hub Show, ele apontou que o acesso à informação vai deixar de ser um problema – nós já temos acesso a uma quantidade infinita de informações, a todo momento, de uma forma que seria difícil até mesmo de imaginar apenas 30, 40 anos atrás – e precisaremos nos preocupar não em como ou onde conseguir essa informação, mas sim em no que fazer com ela: “Por isso, o professor vai ser menos aquela pessoa que traz a informação para as pessoas, e mais alguém que gera um debate.”

E neste futuro onde a informação é apenas mais uma commodity, saber questionar será uma das principais habilidades que precisamos aprender. E, ao invés de um mestre detentor do conhecimento, o professor seria uma espécie de mentor, que ajudaria os alunos a criar um senso crítico sobre as informações acessíveis a ele.

Para um leigo isso pode parecer muito futurista, mas essas características ecoam nos métodos criados por um brasileiro em meio ao sertão nordestino durante a década de 1960: o famoso (ou infame) Paulo Freire.

Porque Paulo Freire?

Antes que você corra pra janela de comentários e comece a escrever parágrafos e parágrafos me xingando, vale lembrar de uma das dicas que o Candreva deu para quem quer aprender a navegar por um mundo caótico: sempre que possível, duvide das suas crenças.

Não é de hoje que o nome de Paulo Freire é visto por muita gente como polêmico – mas esse fenômeno é quase que exclusivamente apenas entre pessoas que não conhecem os métodos e a obra do brasileiro. A principal obra dele – o livro Pedagogia do Oprimido – é a terceira obra mais citada no mundo em trabalhos acadêmicos na área das humanidades, além de ser homenageado em países tão distintos quanto a Suécia (onde foi feita uma estátua em homenagem a ele), a Finlândia (que deu o nome dele a um centro de estudos) e o Kosovo.

Ao contrário do que muita gente acredita, o que tornou o brasileiro um nome tão mal-visto por alguns setores da sociedade não foi o trabalho dele em si, mas o uso político com que o trabalho dele foi utilizado – e muitos dos acadêmicos que estudaram a fundo a obra de Freire acreditam que este uso político nunca foi o objetivo do pedagogo. 

As bases do método de Freire

Existem duas coisas fundamentais que tornavam o método de alfabetização criado por Freire diferente daquilo que conhecemos pelo “ensino tradicional” – e que aproximam ele do “ensino do futuro”, necessário para um mundo pós-IA.

A primeira diferença está na aversão a uma padronização da didática. Freire era totalmente avesso às cartilhas e a utilização de frases “vazias” de significado (“Ivo voou”, por exemplo) tão comuns nos materiais mais básicos de aprendizado. No método Freire, o aluno terá seu aprendizado potencializado se for colocado frente a frases e questões que fazem sentido ao seu cotidiano, e a pensar nessas coisas de forma crítica: não apenas aprender como usar uma enxada, mas entender o porquê ele utiliza uma enxada e não dirige um trator, por exemplo. 

Outro ponto de diferença é o papel do professor: ao invés de ser o “mestre dos saberes”, a pessoa que é dona de todo o conhecimento e que vai distribui-lo para os alunos, que não passam de “recipientes vazios” feitos para absorver esse conhecimento, no método freiriano o professor e o aluno estão em um mesmo nível hierárquico e devem produzir conhecimento juntos. Mais do que um “mestre do conhecimento”, o professor é um guia, cuja função é entender o espaço que o aluno ocupa no mundo e ajudá-lo a olhar para este mundo de forma crítica.

Um dos melhores exemplos de como funciona um professor freireano pode ser visto em A 36ª Câmara de Shaolin, filme de artes marciais produzido em Hong Kong e lançado em 1978. Em uma das cenas do filme, após treinar durante anos com os monges Shaolins, o protagonista volta para a aldeia onde nasceu, no intuito de ajudá-los a se defender de um tirano que controla a cidade. Ele então encontra um ferreiro, que se recusava a continuar trabalhando de graça, tentando lutar – e apanhando – dos soldados do tirano. Mas, ao invés de entrar na luta, o protagonista Shaolin aproveita um momento de distração dos guardas e dá uma dica de como ele pode segurar o martelo que estava usando para se defender. Essa dica faz com que ele consiga manejar a ferramenta de trabalho como uma verdadeira arma, se defender dos guardas e sair vitorioso.

Como professor, o monge não precisou ensinar tudo do zero para alguém que, teoricamente, não sabia lutar; o papel dele foi identificar qual era o ambiente em que seu “aluno” estava inserido, entender quais conhecimentos ele já possuía, juntar com os conhecimentos sobre lutas que ele adquiriu ao longo dos anos treinando com os Shaolins, e então construírem juntos um novo conhecimento – no caso, como transformar um martelo de ferreiro em uma arma útil numa luta.

Pedagogia do Oprimido na era pós-IA

Apesar das semelhanças entre o método de Freire e algumas das necessidades educacionais de um mundo pós-IA, isso não quer dizer que simplesmente devemos pegar ele da forma que é e colocar em todas as escolas. Primeiro, porque o método freireano foi desenvolvido para a alfabetização de adultos. Segundo, que assim como o método tradicional de ensinar de cartilha não mais responde às necessidades do mundo atual, pegar um método de ensino criado há quase 100 anos também provavelmente não será tão efetivo.

Talvez a forma mais justa seja enxergar Paulo Freire para um mundo pós-IA assim como enxergamos Ada Lovelace para a era dos computadores: ninguém criou programas computacionais usando exatamente a mesma linguagem que ela usou no século XVII para desenvolver os cálculos na máquina analística de Babbage, mas ainda hoje utilizamos as técnicas que ela desenvolveu 200 anos antes da criação dos primeiros computadores como a base de nossas linguagens de programação modernas. 

E este pode ser o futuro do nosso mais famoso (e polêmico) pedagogo: não que o método dele deverá ser usado, exatamente como foi pensado em 1960, para se educar uma nova geração que nascerá em um mundo onde o acesso à informação não será mais uma barreira, mas como o princípio de onde surgiram as bases que construirão uma nova educação para o mundo onde as IA generativas serão tão comuns quanto um computador é hoje.

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