Juntos contra a IA: boas relações entre comunicadores é o caminho para salvar a profissão

Juntos contra a IA: boas relações entre comunicadores é o caminho para salvar a profissão

“Tenho 700 e-mails na minha caixa de entrada – facilmente uns 680 são completamente inúteis.”

Essa fala da Laura Martins – jornalista de tecnologia e editora do IT Fórum – no episódio 10 do Innovation Hub Show mostra uma realidade comum a praticamente qualquer jornalista: ter a caixa de entrada cheia de mensagens, releases e sugestões de pauta que não servem para absolutamente nada. E esta realidade é o reflexo de algo que qualquer pessoa no mundo da comunicação sente hoje em dia: a relação entre jornalistas e assessores de imprensa está tão desgastada que muitas vezes profissionais de ambos os lados do balcão se perguntam se realmente existe mesmo uma relação ali.

Problemas de todos os lados

Se você conhece qualquer jornalista – não importa se ele trabalha para grandes jornais, pequenos sites na internet, rádios comunitárias ou canais de TV internacionais – ele vai te dizer que a realidade dele é bem parecida com a da Laura: são centenas de e-mails, mensagens de whatsapp e às vezes até ligações oferecendo pautas. E na grande maioria desses contatos, o assessor de imprensa parece que nunca ouviu falar sobre o jornalista que ele está contatando.

Por ser formado em jornalismo e conhecer muita gente da área, eu já cansei de ouvir histórias de colegas que escrevem sobre tecnologia recebendo sugestão de pautas sobre Festa do Milho, gente que está na cobertura esportiva tendo que responder assessor insistindo numa pauta sobre um novo remédio pra dor de dente, ou gente que é especializada na cobertura do agronegócio tendo a caixa de entrada inundada por pautas sobre a contratação de um novo CMO por uma agência de marketing.

Mas esta realidade tóxica não é exclusiva apenas dos jornalistas, como bem lembra Catarina Cicarelli. Fundadora e CEO da Beet (uma agência especializada no uso da comunicação e das relações públicas para alavancar o crescimento de uma empresa), ela revelou no episódio 10 do Innovation Hub Show que esta relação entre jornalistas e assessores não está fácil para ninguém:  “Mas pra gente também tá sofrido viu? Porque de um lado um monte de jornalista me manda um Whatsapp na hora que bem entendem, mas quando eu preciso falar com as pessoas ninguém me atende, ninguém responde. Então a gente tá num ambiente sem limites pra todos os lados.”

Pressão que vem de cima

Mas por que essa relação entre as partes se deteriorou tanto? Para Flávia Sobral, CEO e presidente da aboutCOM (uma agência de comunicação especializada em traduzir a linguagem tech para pessoas comuns), um dos motivos para assessores e jornalistas terem hoje uma relação extremamente tóxica são as pressões que existem sobre esses profissionais: “existe uma pressão dos departamentos de comunicação por uma coisa ridícula que é número. Então eles não estão nem pensando se a Laura é uma pessoa que vai se interessar pela pauta, eles só querem que seja publicado. E por que eles querem isso? Porque às vezes tem uma pressão global em cima,”

E essa sensação é compartilhada por Guga Peccicacco, gerente de comunicação e RP da Infor na América Latina:  “A relação tá mais tóxica né? Do lado do cliente, eu sinto que a gente tá pressionando muito a mídia pra ser um canal próprio de autopromoção.” E é justamente essa ideia de que a imprensa é um canal de autopromoção que tem ajudado a ruir as relações entre jornalistas e assessores.

Ao mesmo tempo que os assessores sofrem com pressões dos clientes (que exigem um número X de publicações das pautas que eles consideram importantes), os jornalistas também sofrem com as pressões inerentes da redação: não é necessário apenas publicar mais conteúdos, mas esses conteúdos precisam atrair um número X de visualizações, conseguirem um bom engajamento nas redes sociais e, no caso de sites e blogs, manter as pessoas por pelo menos um X número de minutos dentro do site. E, muitas vezes, não é falando sobre a contratação de um novo CIO, ou o uso de uma nova ferramenta de software por uma empresa que o veículo vai conseguir esses números.

Isso também não quer dizer que esses assuntos não sejam pauta, mas a dificuldade que muitas empresas ainda possuem é achar que a imprensa é um monólito, e não conseguirem entender que um assunto que é interessante para um tipo de veículo pode não ser interessante para outro. Por exemplo, a contratação de um novo CMO por uma multinacional pode ser a matéria de capa do dia de um veículo como o Meio & Mensagem, mas pode ser que um site como IT Fórum não considere isso interessante nem para uma nota de rodapé. E isto acontece porque cada veículo tem uma editoria própria, com regras de publicação próprias que foram criadas para satisfazer os desejos de um público que possui seus próprios interesses.

A imprensa é o seu cliente

Para Laura Martins, a solução para a melhora dessa relação passa pelos assessores se esforçarem para entender melhor quem são os profissionais e veículos pra quem eles querem vender uma pauta: “Dê um tempo pra essa pessoa pesquisar um pouco sobre cada jornalista, entender os temas que eles abordam, qual costuma ser o viés das matérias. Porque existem vários perfis diferentes dentro de um mesmo veículo, e você conhecer essas pessoas aumenta suas chances de vender sua pauta pra alguém que realmente vai se interessar por ela.”

Isso parece muito lógico para quem está na área, mas não é assim tão claro pra quem não vive a rotina das redações e das assessorias. Por isso, Guga Peccicacco explica essa estratégia de uma outra forma, que fala mais diretamente com a rotina dos tomadores de decisão das empresas – aqueles que são os clientes que, muitas vezes, exigem apenas números de suas assessorias: “Uma coisa que eu costumo falar é: trate a mídia como se fosse um cliente. Por que o que você faz com um cliente? Você não chega lá empurrando o que você está vendendo. Primeiro você tenta entender qual o contexto desse cliente, quais são os medos, os desejos, onde ele quer chegar. Não só da empresa, mas da pessoa que está tomando a decisão. Então a gente precisa primeiro escutar, entender o que está acontecendo não só naquela empresa, mas para aquela pessoa e naquele mercado.”

E, claro, a responsabilidade de recuperar essa relação não cabe apenas aos assessores: os jornalistas também podem fazer sua parte para ajudar esses profissionais. Uma sugestão dada pela Laura é baseada em algo que o IT Fórum já fez e que tem dado certo: marcar uma reunião com todas as agências interessadas para apresentar o veículo, explicar o que é e o que não é pauta para eles, e apresentar todas as matérias especiais que eles irão trabalhar ao longo do ano e quais os tipos de fontes que eles procuram para essas reportagens. Esta apresentação era gravada e disponibilizada para todas as assessorias, e ajudou às que participaram (ou assistiram à gravação depois) a enviar sugestões de pauta que estivessem mais a ver com a linha editorial do site – e, assim, terem mais chances de serem publicadas.

Algo parecido também é feito pelo Igor Lopes, host do Innovation Hub Show e que tem uma longa carreira como jornalista de tecnologia – inclusive sendo um dos fundadores do Canaltech. Ele comenta que recebe dezenas de mensagens de assessores – muitas de pessoas que não sabem exatamente pra qual veículo ele está produzindo ou quais os assuntos que ele costuma tratar – e ele já possui uma resposta automática que envia um anexo explicando exatamente os temas que ele tem interesse em cobrir e qual a linha editorial do veículo que ele está trabalhando.

Muito além da imprensa

Considerando tudo isso, existe um outro motivo que explica o porquê a relação entre imprensa e assessores está tão despedaçada, e é um que passa batido inclusive por muitos profissionais de comunicação: a de que as publicações na imprensa devem ser apenas um pedaço da sua estratégia de comunicação, e não toda ela. Como bem disse a Catarina Cicarelli:  “A gente fala como se a matéria fosse o fim, mas não é o fim! O fim é se as pessoas entendem a mensagem que você quer passar.”

E este é um ponto que é bastante reforçado pela Flavia Sobral: “A assessoria de imprensa é uma parte mínima de uma estratégia de comunicação. Ela é só mais uma ferramenta.” E era em ter problemas com a abordagem de muitas agências onde trabalhou que ela criou a aboutCOM, onde finalmente pôde criar estratégias onde a publicação na imprensa era apenas uma pequena parte, e não toda a comunicação de um cliente.

Ela ainda critica a forma como muitas agências de comunicação utilizam o papel do relações públicas, tornando este profissional capacitado e criativo num instrumento de uma nota só:  “O trabalho do RP não é só assessoria de imprensa. Às vezes é mais negócio você colocar o seu cliente pra dar uma palestra num evento, onde ele vai falar durante 40 minutos sobre a empresa e isso vai gerar 3 reuniões com possíveis novos clientes no fim da semana. Muitas vezes isso dá mais resultado do que emplacar uma matéria na imprensa.”

E esta é uma abordagem que recebeu uma concordância total de todos os participantes do último episódio do Innovation Hub Show: a de que falta uma certa criatividade para o trabalho de RP e assessores. Ao invés de lotar a caixa de entrada dos jornalistas com e-mails de releases, porque não criar conteúdos ricos para serem postados no Linkedin, ou então desenvolver uma transmissão ao vivo no Instagram tirando dúvidas do público? Existe muito mais vida além de emplacar um release em um grande site ou grande jornal, e números de impressões nem sempre acabam se convertendo em vendas diretas.

É sobre relacionamentos

No fim, é preciso que tanto assessores quanto jornalistas relembrem que as relações entre eles continuarão tóxicas enquanto não enxergarem que aquilo ali é um relacionamento – ou seja, é preciso que ambos os lados se esforcem e façam concessões para dar certo.

Como bem disse a Laura Martins no podcast: “”No fim é tudo sobre relacionamentos, não é sobre a matéria. É o assessor que é brother que num perrengue eu vou ligar e vou pedir pelo amor de Deus, e quando ele me ligar pedindo pelo amor de Deus eu vou ter mais espaço inclusive pra falar ‘cara, isso não é pauta mas se você vir com o viés tal talvez eu consiga publicar aqui.’ E criar esse tipo de relacionamento independe de onde você está ou pra quem você está escrevendo.”

Assim como em toda guerra, manter as relações entre jornalistas e assessores em pé de guerra não trará vencedores reais, apenas um mundo onde todos os lados saem perdendo. E, num momento em que a IA ameaça ambas as profissões, talvez seja hora de respirar fundo, engolir um pouco orgulho e participar de uma terapia de casal antes que essa relação entre jornalistas e assessores se deteriore tanto que fique fácil enxergar como uma IA pode substituir esses profissionais. Porque se o papel deles for apenas enviar e-mails e publicar textos, uma IA pode facilmente substituir essas tarefas. Mas sabe o que é que ela nunca vai substituir? Um relacionamento real entre humanos.

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