CPF na nota? Seus dados valem muito mais do que alguns centavos

CPF na nota? Seus dados valem muito mais do que alguns centavos

Colocar o CPF na nota tornou-se uma prática comum para muitos brasileiros. Afinal, é só vantagens né? Você ganha descontos, cashback e outras vantagens em troca apenas do seu número do CPF. Mas, você já parou pra pensar o porquê tanta gente quer essa informação – tanto que estão até dispostos a pagar por ela?

“A proteção de dados é uma questão seríssima, e muitas vezes a gente dá o CPF em qualquer estabelecimento comercial, sem saber qual a finalidade do uso, em troco de um pequeno desconto.” Esta fala poderosa de Marcelo Gripa,  jornalista especializado em tecnologia e cofundador da Futuros Possíveis (uma plataforma que tem como principal objetivo produzir conteúdos que ajudem o público a entender sobre o que esperar do futuro) no episódio 9 do Innovation Hub Show aponta para uma ferida que muita gente nem percebe que existe: por que as empresas querem tanto os seus dados pessoais?

O “bom” CPF na Nota

Quando falamos sobre cadastrar o CPF em um compra, a primeira coisa que vêm à mente são programas como o Nota Fiscal Paulista, Nota Carioca, Nota Fiscal Cidadã, Nota Legal e outros do tipo – basicamente os programas estaduais que conferem créditos de “cashback” para quem cadastrar o CPF na hora de emitir a nota de uma compra. Mas não são esses os programas com os quais você deve se preocupar – na verdade, esses são talvez os lugares mais seguros para se cadastrar o CPF.

O primeiro motivo para isso tem a ver com o principal objetivo deles: aqui, criar uma base cadastral de consumidores não é o objetivo do programa em si. Na realidade, para esses programas quem faz as compras é apenas uma “ferramenta” para atingir real objetivo deles: diminuir a evasão fiscal do comércio. Ao oferecer créditos de “cashback” a cada compra – que podem ser transformados em descontos nos tributos estaduais ou transferidos como saldo em dinheiro na conta – o estado transforma cada consumidor em uma espécie de “fiscal da receita”, que força os comerciantes a emitirem notas fiscais completas ao fim de cada compra – e, assim, pagar todos os tributos estaduais relativos àquela transação.

Infelizmente, não são fornecidos os dados exatos de quanto essas operações geram para o estado, mas é possível inferir que elas correspondem a uma boa parcela da arrecadação. Em março deste ano, a Secretaria da Fazenda e Planejamento de São Paulo (Sefaz-SP) liberou um crédito de R$39 milhões referentes ao “cashback” das compras feitas por 14,6 milhões de consumidores em novembro do ano passado. Assim, podemos inferir que a arrecadação fiscal neste período foi bem maior do que R$39 milhões, e muito do valor arrecadado poderia não ter entrado para os cofres de São Paulo caso os consumidores não pedissem o CPF na nota fiscal, pois isso tornaria mais fácil a não emissão de notas e, por consequência, a não tributação dessas vendas.

Outro motivo de porque esses cadastros são dos mais seguros está no contrato deles: todos esses programas deixam claro que tanto as informações pessoais (seu nome, CPF, endereço, etc) quanto as informações transacionais (o que você comprou, onde e por qual valor) são exclusivos de uso do governo estadual, e apenas para fins fiscais. Ou seja, o governo não apenas não pode vender seus dados para outras empresas e parceiros, como também não pode usar seu histórico de compras para oferecer serviços ou descontos específicos baseados no tipo de produto que você adquire. Todos os dados coletados servem para apenas um objetivo: garantir que as empresas e comércios não estão tentando burlar o pagamento de impostos.

E um terceiro motivo se deve pela própria segurança dessas bases, que são algumas das que melhor protegem os seus dados. Por exemplo, a Nota Fiscal Paulista, pioneira neste tipo de programa e que existe desde 2007, nunca sofreu qualquer tipo de vazamento em sua base de dados (pelo menos até o dia da publicação desta matéria, se você estiver lendo isso num futuro onde por algum motivo um vazamento desses aconteceu eu não posso me responsabilizar).

A raiz do “problema”

Mas se o CPF na nota é seguro, com o que eu devo me preocupar? Basicamente, com todas as outras formas de coleta dos seus dados pessoais. Sabe a farmácia que pede seu CPF para liberar descontos? Ou o supermercado que tem um programa de vantagens que só pede o seu cadastro pra te dar descontos em itens específicos? Então, todo eles podem tentar te “esconder” algumas coisas que, caso soubesse, talvez você escolheria não participar desses programas.

Aqui eu uso “esconder” entre aspas porque essas informações não estão necessariamente ocultas, mas apenas em lugares que a maioria das pessoas não vai perceber (como as letras miúdas de um cartaz) ou não vai procurar (como nos documentos de regulamentos escritos na forma de enormes contratos, cheios de termos jurídicos que a maioria das pessoas preferem nem tentar ler). 

Um exemplo disso? Muitos supermercados possuem programas de fidelidades que oferecem descontos em determinados produtos ao fazer o cadastro e inserir o CPF cadastrado na hora de passar suas compras no caixa. Mas uma coisa que muitos deles escondem na hora de te convencer a se cadastrar é que esses dados coletados não são para uso exclusivo do próprio mercado: ao participar desses programas, você dá a esses estabelecimentos o direito de não apenas usar os seus dados cadastrais e transacionais como quiser, mas também de compartilhá-los com outros parceiros.

Um desses casos pode ser visto no contrato de privacidade e proteção de dados da rede Pão de Açúcar. No capítulo “3. Com quem seus Dados serão compartilhados?”, o contrato deixa claro que todos os dados coletados (pessoais e transacionais) são compartilhados não apenas com outras lojas da rede e com o governo (neste caso, apenas quando há a existência de mandados judiciais que obrigam o compartilhamento desses dados – por exemplo, durante uma investigação da polícia), mas também com empresas parceiras (incluindo todos os fornecedores e parceiros comerciais do mercado) e empresas de dados. 

Isso por si só é algo problemático? Não. Na economia atual, o compartilhamento de dados de consumidores entre empresas parceiras é a base de muitas estratégias de marketing – principalmente as digitais. Mas há um certo problema ético em não deixar essas informações claras para os clientes, principalmente quando muitas das campanhas vendem as muitas vantagens que você pode ter ao efetuar um cadastro, mas esconde no meio de um contrato enorme e cheio de termos jurídicos exatamente o que será feito com os seus dados. Ainda que não seja algo ilegal, esse procedimento muitas vezes faz com que o consumidor concorde com um procedimento que ele não faz ideia de como realmente funciona.

O real valor dos seus dados

E é justamente sobre o valor desses dados que a Gigi Casimiro, produtora especializada na criação de espaços no metaverso, comentou sobre no episódio 9 do Innovation Hub Show: “Essa história do brasileiro dar o CPF por descontinho e tal, as grandes empresas do EUA e da Europa fazem muita grana no Brasil com os dados do brasileiro. E isso é uma das questões que me preocupa muito. O Brasil acho que não tá preparado ainda pra lidar com essa capitalização dos dados dos indivíduos, mas este é um grande problema que já existe há mais de 10 anos, e agora acho que vai ficar cada vez mais sério. Então a gente vai ter que tomar cuidado com esse processo de neocolonização digital.”

Já para Marcelo Gripa, esse valor se torna cada vez mais difícil de mensurar, já que esses dados se tornam cada vez mais valiosos conforme nossa economia vai se digitalizando: “O dado pessoal ele vale muito numa economia digitalizada, e as pessoas precisam ter noção disso. Não só do quanto suas informações pessoais valem, mas o quanto elas podem orientar estratégias financeiras e comerciais em relação ao hábitos dela online.”

Sabe aquele negócio de você pensar em um produto e, de repente, começar a ver propaganda dele em todos os sites que você navega? Isso não quer necessariamente dizer que o seu computador (ou celular, ou smartwatch, ou TV, ou Alexa…) esteja gravando tudo o que você diz e lendo seus pensamentos, mas você pode ter certeza que tudo o que você está fazendo online é rastreado. Pode ser que você nunca tenha comentado com ninguém que precisa comprar um tênis de caminhada, mas uma loja online que tem parcerias com as redes sociais que você utiliza e com o supermercado que você faz compras (e que já colocou um cookie no seu computador porque uma vez há um ano atrás você acessou o site dessa loja online por uma promoção da Black Friday) percebeu que, nas últimas 2 semanas, você interagiu com várias postagens de grupos de pessoas que fazem caminhadas diariamente, e comprou uma caixa de barrinha de cereais e uma garrafa de água daquelas que mantém ela gelada por mais tempo. Essa suposta loja, que provavelmente tem um algoritmo de IA fazendo o cruzamento de todas essas informações e um profissional de dados para analisá-las, percebeu que você é um cliente que já está se educando sobre o assunto e pronto para fazer uma compra de um tênis específico para quem quer começar a caminhar – e é por isso que você passou a ver tantos anúncios sobre o tal tênis em todos os lugares.

E esta é a realidade da economia baseada em dados desta era digital: não é que os seus dados pessoais custem os X reais pelos quais são vendidos pelas empresas especializadas em criar bases de leads e revendê-los para empresas e agências de marketing, mas porque, hoje, eles são a base das estratégias de marketing e dos funis de vendas desenhados por todos esses lugares. Não é que saber seu CPF vai fazer a Coca-Cola te vender mais – mas saber em quais momentos você comprou uma Coca-Cola, e cruzar esses dados de compras com suas postagens nas redes sociais, irá ajudar a empresa a entender se você é uma pessoa que bebe mais Coca-Cola quando está triste ou quando está feliz, e então ela saberá identificar o momento exato em que te oferecer uma propaganda de Coca-Cola irá resultar numa compra. E ter acesso a este tipo de informação é algo que qualquer empresa paga sem pensar duas vezes.

O conhecimento é a chave

De modo geral, este tipo de tratamento dos dados acaba sendo bom tanto para as empresas quanto para os consumidores: afinal, as empresas sabem quando é o momento ideal de te oferecer um produto, e você como consumidor muitas vezes ganha um desconto em algo que já estava pensando mesmo em adquirir. No fim, todo mundo ganha!

Mas para Luiz Augusto D’Urso, advogado especialista em direito digital, há uma parte meio cruel na forma como essa história de troca de dados por descontos está sendo tratada: a de colocar toda a responsabilidade sobre saber para o que seus dados estão sendo usados no usuário: “No fim, hoje o usuário tem que saber de tecnologia pra entender onde há coleta e qual a aplicação dela. Tem que entender de direito, porque nós temos a Lei Geral de Proteção de Dados para mostrar quais são os direitos desses usuários. Tem que entender muitas frentes para exercer essa autonomia de que ele não é mais um produto, que só vai ceder dados quando ele quiser, quando for necessário, quando é opção dele. Então acho que esse é o problema do futuro: ele tá cobrando um acesso à informação que infelizmente muitas pessoas não tem.”

Como resolver esse problema e tirar toda a responsabilidade das costas do usuário é que é a questão. As empresas precisam ser mais transparentes sobre para que estão coletando esses dados e como eles serão usados? O governo precisa fiscalizar se essa transparência estão sendo realmente aplicada e todas as pessoas que fazem o cadastro em algo sabem para que os seus dados serão utilizados? Ou talvez tudo isso e mais algumas soluções que eu não consigo nem pensar em escrever aqui porque não sou um especialista no assunto?

Muito provavelmente é esta terceira opção a mais correta, mas talvez seja a menos realista – até porque vivemos em um país onde falar de “regulação governamental” é um dos maiores pecados para boa parte da população e do empresariado. Mas independente da solução, ter o controle sobre nossos futuros significa ter um conhecimento maior sobre o real valor de nossos dados. E, claro, não deixar que eles sejam usados para uma neocolonização digital, na qual empresas de fora usam esses dados para pegar nossas riquezas e levar elas para a Europa, Ásia ou os EUA, enquanto a gente fica aqui encantados com 2 espelhinhos e os 5% de desconto que eles nos deram.

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