True Crime Digital: criminosos online assustam mais do que offline

True Crime Digital: criminosos online assustam mais do que offline

Não dá pra negar que a internet foi invadida pelo fenômeno do true crime nos últimos anos, com uma geração que pode se embananar na hora de dizer quais são as capitais dos estados brasileiros, mas consegue fazer um Top 10 de assassinos em série sem pensar muito. De maneira geral, este gênero ainda é muito ligado a crimes cometidos no mundo físico por figuras como John Wayne Gacy, Jeffrey Dahmer, Charles Manson, Pedrinho Matador ou o Maníaco do Parque.

Mas, infelizmente, o mundo digital também está se tornando um lugar onde crimes brutais e bizarros são praticados – muitos no mesmo nível de famosos serial killers. Mas há uma grande diferença na forma como as coisas são apuradas. “Crime é crime. Então estupro é estupro na vida real ou no ambiente virtual – inclusive é o mesmo artigo 213, não tem diferença nenhuma nem no tipo penal”, explica o advogado Luiz Augusto D’Urso, especialista em direito digital, no episódio 16 do Innovation Hub Show. “A diferença é que um é praticado na modalidade física, e isso gera algum tipo de prova, outro tipo de investigação, outros tipos de elementos.”

Hoje, os crimes virtuais vão muito além das tentativas de fraude feitas por um príncipe nigeriano: estamos falando de estupros, mutilações, pedofilia, ameaças que conduzem as vítimas ao suicídio. A lista de crueldades é enorme! E um dos grandes desafios é justamente o que fazer para conter tudo isso.

Do Discord para uma cela fria

Um dos casos de maior notoriedade que aconteceu nos últimos anos foram as prisões que ocorreram após diversas investigações em grupos do Discord, que eram usados por criminosos para praticar crimes que iam desde o maltrato de animais, incentivos à mutilação e estupros virtuais (que é quando alguém se utiliza dos meios eletrônicos para chantagear ou constranger outra pessoa a enviar nudes ou gravar vídeos íntimos). O caso teve repercussão nacional, inclusive com uma extensa reportagem no Fantástico, e até o momento já causou a prisão de 80 pessoas envolvidas.

E uma das pessoas responsáveis por ajudar a polícia a encontrar esses criminosos é Carla Albuquerque, diretora executiva e fundadora do Medialand – produtora brasileira que foi uma das pioneiras do país no gênero true crime, com programas como Operação de Risco, Investigação Criminal, Divisão de Homicídios e Anatomia do Crime. Por sempre estar neste meio, Carla recebia muitas denúncias de crimes digitais acontecendo não apenas no Discord, mas em diversas plataformas online, mas sabia que a polícia não tinha ainda condições técnicas de dar conta de tudo sozinha.

“Quando a gente viu toda essa problemática, o que nós fizemos? Eu fui atrás da melhor galera da área digital. Fui atrás dos hackers éticos”, conta a executiva no episódio 16 do Innovation Hub Show. “Falei ‘gente, vamo sentar aqui que a gente tem um problema sério. Tem esse monte de crime, esse monte de vítima, criminoso. Como é que a gente ajuda?’, e eles começaram a pensar e a desenvolver softwares e soluções pra gente conseguir achar essas pessoas. Aí montamos um exército de colaboradores dentro dessas plataformas, que ficam dias e noites procurando lixo eletrônico.” Carla afirma que este esforço já rendeu mais de 300GB de material – muito deles de conteúdo sensível, envolvendo inclusive a divulgação de pedofilia dentro das plataformas – mas que este não é um material feito para “fazer barulho” na imprensa: ele vai primeiro para os inquéritos policiais, e só após as investigações que é decidido o que pode ou não ser divulgado.

Os esforços dessas pessoas – que se infiltram nos grupos mais problemáticos do Discord e usam táticas de engenharia social para tentar identificar quem são esses criminosos, independente de barreiras como ocultação de IP e uso de VPNs – resultaram não apenas nas prisões relativas ao Discord, mas também na identificação dos mandantes do ataque de 23 de outubro em uma escola de Sapopemba, e que resultou na morte de uma adolescente de 17 anos. Os esforços desse grupo ajudaram a polícia a identificar que o autor do crime – um jovem de 15 anos – não agiu sozinho, mas foi manipulado por um grupo de pessoas que conheceu na internet. “Um desses mandantes era um português, que morava lá em Portugal, e que se passava por brasileiro”, conta Carla Albuquerque, “ aí a gente reuniu todas as informações que achamos sobre essa pessoa, acionamos a polícia judiciária, e acabou. O cara tá preso.”

De acordo com Carla, é justamente na coleta dessas informações que o grupo mais tem ajudado a polícia: “Ela [a polícia] precisa saber onde que tá isso. Porque o universo digital é enorme: pode estar numa rede Tor, na superfície, numa plataforma.” Essa dificuldade da coleta existe justamente pela dificuldade de um policial se infiltrar nesses grupos: afinal, em sua maioria, estes são ambientes habitados por adolescentes, e eles facilmente conseguiriam reconhecer um adulto apenas pela forma de se comunicar.

Mas por que a polícia depende tanto desse trabalho de infiltrados para coletar as informações? E é aí que entra o problema das plataformas.

Você é o produto – e a vítima

Uma frase muito marcante sobre qualquer plataforma de rede social atual é aquela de que, se você não está pagando por algo, você não é o cliente, mas o produto. E isto é uma realidade quando falamos de praticamente qualquer rede social ou app de mensagens: Facebook, Instagram, TikTok, WhatsApp, Discord, Telegram. O modelo de negócio é sempre o mesmo: oferecer um serviço gratuito, te conquistar com aquilo, e depois que você estiver já fidelizado vender a sua atenção para os anunciantes que querem te vender um serviço ou produto (e aí depois deixar a experiência pior pra você e pros anunciantes). E, quando você quer atrair pessoas para um ambiente em que essas pessoas são uma parte do seu produto, deixar claro que naquele ambiente acontecem crimes não é uma boa propaganda.

“ A única plataforma que colabora um pouco é a Alphabet, do Google. As outras não colaboram”, conta Carla Albuquerque. “A Meta, do Facebook, prefere pagar uma multa do que colaborar, se recusando a oferecer informações que a polícia precisa para esclarecer um determinado crime, combater este crime e ajudar que outras pessoas não sejam vítimas do mesmo crime no futuro. E o porquê disso? Porque elas não querem que a ideia de ‘crime’ seja ligada ao universo delas.”

Já o advogado Luiz Augusto D’Urso, especialista em direito digital e que também participou do podcast, aponta um outro motivo do porquê essas plataformas não ajudam nas investigações: “não ajuda pra não gerar obrigação. Porque toda vez que ela presta uma ajuda, ela é elogiada, a polícia chega e fala ‘conseguimos solucionar este caso por causa do dado fornecido gentilmente pela plataforma tal’, mas em 90% dos casos ela se recusa a disponibilizar os dados, porque aí não se torna uma obrigação e responsabilidade dela.” E as plataformas levam muito a sério essa ideia de não assumir a responsabilidade: nosso host Igor Lopes revelou que, em uma visita recente a um datacenter que abriga os servidores de uma rede social, os computadores possuem embutido em cada um deles uma ferramenta capaz de destruir o disco rígido dessas máquinas a qualquer momento, impossibilitando assim a recuperação de dados mesmo com mandado.

“Quando você pega os termos de uso dessas plataformas, aquilo é bizarro”, comenta Carla Albuquerque, “Aí você quer comunicar um crime, como um estupro virtual. E aí a gente descobre que o canal de denúncia não aceita o envio de qualquer conteúdo potencial de crime dentro da plataforma.” Essa foi uma das descobertas que ela fez no Discord: antes de criar o grupo que descobriu as informações que a polícia precisava para fazer as prisões, Carla tentou denunciar pelas próprias ferramentas do Discord – apenas para descobrir que elas não aceitavam qualquer denúncia sobre crimes ocorridos dentro da plataforma.

Para Carla, uma saída é criar mecanismos para impedir o abuso dessas plataformas, mais ou menos como o exemplo europeu, que criou leis para obrigá-las a assumir responsabilidades criminais e jurídicas sobre o que acontece dentro delas. Ela sabe que, sempre que um assunto desses entra em pauta, a primeira coisa que essas plataformas fazem é ameaçar sair do Brasil, mas “truca” de que isso realmente vai acontecer: “Eu duvido! Olha o tamanho do Brasil! Eles ganham muito dinheiro aqui, duvido que qualquer plataforma vai abandonar esse mercado. Olha o que está acontecendo com o TikTok nos EUA: eles estão arrumando uma maneira de acomodar uma decisão americana, e estão se submetendo. E tem que se submeter, porque existe uma soberania nacional.”

Mesmo assim, ela sabe que será muito difícil conseguir com que essas empresas se responsabilizem pelo que acontece dentro de suas plataformas: “A única segurança que essas elas investem – e investem pesado – é na segurança jurídica pra elas e pra ninguém roubar a tecnologia delas. O usuário está à mercê do crime, do criminoso, e elas não fazem nada.”

Denúncia como arma

Como mudar esse cenário onde não há praticamente nenhuma proteção para as vítimas de crimes virtuais – e até mesmo para evitar crimes que transformem suas vítimas em criminosos por si só? Para Carla Albuquerque, a denúncia é a única ferramenta que temos hoje: “A grande maioria das pessoas fala assim: ‘ah, eu não vou denunciar. Não vai dar em nada.’ A gente tem essa postura que precisa mudar: tem que denunciar, fazer acontecer. Se a gente não mudar nossa postura, as coisas não vão mudar.”

Como bem lembra a executiva da Medialand, a maior arma da polícia não é o revólver, mas a informação – e é apenas denunciando sempre que um crime ocorre que poderemos indicar para esta polícia que é preciso também dar uma atenção maior aos ambientes virtuais. Sim, sabemos que nem sempre é fácil denunciar: a internet está cheia de relatos de vítimas que foram revitimizadas pelos próprios policiais ao tentar fazer uma denúncia, porque nem todos os agentes estão capacitados – não só em conhecimento técnico, mas até mesmo em empatia – para entender e dar importância a elas. Mas, no momento, esta é a maior arma que nós temos: denunciar e mostrar ao mundo o que está acontecendo. E só fazendo muito barulho que conseguiremos mudar as coisas.

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