Controle sobre o futuro: como os chineses se acostumaram com o estado de vigilância

Controle sobre o futuro: como os chineses se acostumaram com o estado de vigilância

Quando pensamos na China, invariavelmente três coisas acabam surgindo na nossa mente: alguma polêmica envolvendo o TikTok, a importância que o país tem na economia mundial, e em como este país consegue crescer tanto mesmo com um governo autoritário e que vigia constantemente os seus cidadãos.

Os níveis desse controle sobre os cidadãos ficaram muito mais claros durante a pandemia. Enquanto muita gente por aqui chamou de “lockdown” o fato de haver uma “sugestão” para as pessoas não saírem de casa – e, se saírem, usar máscaras – durante o período mais complicado da pandemia de COVID-19, a China fazia lockdowns de verdade: durante um período de 15 dias tudo parava, apenas os serviços realmente essenciais continuavam funcionando, e funcionários do governo eram designados para distribuir mantimentos para as pessoas que estavam presas em casa. Ficar dentro de casa não era uma sugestão, mas uma lei que deveria ser seguida ao pé da letra, e qualquer pessoa que fosse pega fora de sua residência sem autorização iria sofrer sérios problemas.

Mas como explicar que um país com um governo tão controlador esteja pedindo passagem para se tornar a mais importante economia do mundo

A China não é os EUA (ou o Brasil)

De acordo com In Hsieh, co-fundador da Chinnovation (uma aceleradora de negócios digitais que promove a relação entre Brasil e China), o primeiro passo para entender a China é abandonar a nossa própria “régua” de valores morais, e entender que as preocupações da população chinesa são diferentes daquelas que estamos acostumados a exigir no mundo ocidental: “A gente fala muita da China dos últimos 100 anos, mas não podemos esquecer que é um país com 4000 anos de história, e uma boa parte deste período é baseado nesses valores de coletividade. Então isso faz parte da cultura, e aí não importa o nome que a gente dá pro sistema político regente do momento. E é difícil a gente transplantar isso para outros lugares, independente das vantagens ou benefícios que isso possa trazer. E o contrário também é verdade: os chineses olham pros nossos valores e falam ‘isso aqui não faz sentido!’ Então o que a gente preza muito – como a liberdade individual – o chinês não enxerga como algo tão importante. E não é agora, nos últimos 100 anos que ele acha isso – sempre foi assim.”

Especialista em China, Hsieh participou do episódio 7 do Innovation Hub Show, onde o tema principal da discussão foram os motivos que explicam a China ter se tornado a potência que é hoje. Um dos principais pontos defendidos por ele foi este: o de que nós (o ocidente) vemos as coisas que acontecem na China muito sob o prisma dos valores que achamos importantes no ocidente, e não temos a empatia de tentar entender a visão da própria população chinesa sobre o que acontece no país.

E, como bem lembra no mesmo episódio Luiz Augusto D’Urso, advogado especialista em direito digital, quando falamos de China nós estamos falando da segunda maior nação do planeta, um país com 1,4 bilhão de pessoas. Por mais poderosos que sejam os órgãos governamentais, seria praticamente impossível controlar tantas pessoas se você estiver fazendo algo com o qual elas não concordam. Uma imposição de medidas que vão contra os valores fundacionais do povo certamente não seria aceito por todos, e esse sentimento de desgosto poderia facilmente se transformar nas chamas de uma revolta (como já aconteceu em diversos momentos da história do país).

Vigilância positiva?

E então fica a pergunta: como as pessoas da China se sentem sobre o alto grau de vigilância aos quais são submetidas? É esta questão que a pesquisadora canadense Ariane Ollier-Malaterre tenta responder no livro Living with Digital Surveillance in China: Citizens’ Narratives on Technology, Privacy, and Governance. No livro, ela apresenta entrevistas feitas com 58 moradores das regiões de Pequim, Xangai e Chengdu. E uma das descobertas mais interessantes foi que a maioria dos participantes enxerga a vigilância a que são sujeitos como algo positivo. A vigilância extrema não apenas é visto pelas pessoas como algo bom, mas até mesmo essencial para solucionar os problemas do país.

E aí é preciso lembrar daquilo que Hsieh apontou no podcast: o povo chinês possui alguns valores morais, além de formas de enxergar o mundo, que são bem diferentes da tradição ocidental. E isto fica claro em algo apontado por quase todos os participantes da pesquisa: eles enxergam uma “falta de qualidade moral” no cidadão chinês, que se comporta como crianças mimadas. Este tipo de visão é até comum no ocidente quando enxergamos os conflitos entre gerações (os mais velhos sempre enxergam a geração de vem depois deles como preguiçosos e mimados, não importa se são Boomers falando dos Gen X, ou mesmo Millennials sobre a Gen Z), mas na China não há este corte por idade.

Neste contexto, as tecnologias de vigilância são vistas por muitos como uma forma de punir as pessoas que não seguem os padrões morais esperados pelos chineses. E é justamente na proteção desses valores morais que percebemos como a visão dos chineses é bem diferente da nossa em alguns pontos cruciais.

Um desses pontos é a questão da privacidade: enquanto por aqui (e em “aqui” falo do ocidente como um todo) a questão da privacidade e proteção dos dados é uma pauta de disputas políticas envolvendo órgãos reguladores do governo, empresas e entidades que representam os consumidores, na China isto é mais do que uma não-questão: é algo mal visto. A pesquisa descobriu que boa parte dos chineses vê essa preocupação com a privacidade dos dados como algo negativo. Sabe aquele ditado “quem não deve não teme”? Ele meio que resume esta questão para boa parte da população da China, que enxerga quem se preocupa com isso como alguém que tem algo a esconder.

Outra diferença é na visão que a população tem de seus próprios governos: em um ocidente onde o liberalismo é a principal filosofia econômica seguida pela população, o governo é visto como um “sanguessuga”, uma entidade que tira dinheiro do trabalhador através dos impostos, e que utiliza este dinheiro em projetos corruptos que visam engordar as próprias contas bancárias. Já na China, o governo é visto pela população como um “pai benevolente”, alguém que se preocupa com a segurança e prosperidade dos seus cidadãos. Essa visão muito mais positiva do governo ajuda a entender porque os mecanismos de vigilância – inclusive aqueles bem polêmicos por aqui, como créditos sociais e censura de conteúdos – são vistos como uma solução pela população geral, e não como um problema.

E no ocidente?

Apesar de, num primeiro momento, estranharmos que os chineses se sintam bem vivendo em um estado de vigilância contínua, não podemos esquecer que nós aqui também já vivemos em nosso próprio estado de vigilância – e que também é intrinsecamente ligado a contextos políticos, culturais e socioeconômicos.

Por exemplo, nossas preocupações com privacidade vivem em um constante conflito com a necessidade de um sentimento de segurança baseado no monitoramento de imagens. Câmeras se tornaram tão comuns em praticamente todos os lugares públicos – e em uma boa parte dos privados – que, em algumas cidades, é possível seguir todos os passos de uma pessoa ao longo do dia e saber tudo o que ela fez ou deixou de fazer. E, com a chegada dos sistemas de reconhecimento facial por IA, este tipo de monitoramento pode ser feito literalmente o tempo todo, para todas as pessoas, independente de se elas estão sendo ou não investigadas.

E o que falar do nosso hábito de postar toda nossa vida nas redes sociais? Muitas vezes temos receio de fornecer dados como CPF ou número da conta bancária para órgãos governamentais por medo de que eles sejam roubados e usados em golpes, mas todos os dias estamos divulgando  nossa rotina nas redes sociais – seja desejando um “Bom dia seguimores” no momento que acordamos, postando uma foto do almoço ou avisando toda a timeline que hoje é aniversário de nosso sobrinho. Essas informações – divulgadas publicamente e por vontade própria, sem qualquer tipo de exigência governamental – são a base de muitos dos golpes aplicados todos os dias na internet. E, com tantas tentativas de “cancelamento”, além do aumento de movimentos civis que pedem a censura de livros em escolas – alguns inclusive defendendo a queima de publicações na fogueira – também não é possível dizer que somos totalmente imunes à censura como sociedade.

A real é que, por mais que haja um movimento que tenta demonizar a China, ela não deixa de ser um país cheio de contradições e belezas quanto o Brasil, os EUA ou qualquer outro do ocidente. E, assim como nós, o povo chinês, de forma geral, tem as mesmas ambições: viver em paz, prosperar e ver seus filhos crescendo em um mundo melhor e mais seguro. Pode haver divergências em como conseguir isso, mas talvez seja necessário enxergar as nossas próprias contradições e problemas antes de apontarmos dedos para um país que, sim, possui um governo autoritário, mas que aparentemente entrega para a população muitas das coisas que ela deseja,

E fica o questionamento: será que podemos dizer o mesmo das nossas democracias?

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